Queratocone: sintomas, diagonóstico e tratamento
- João Rosado
- 31 de mar.
- 10 min de leitura
O termo "queratocone" tem origem no grego, onde “kéras” significa córnea e “cõnus” significa cone, referindo-se à deformação cónica da córnea característica desta patologia. O queratocone é uma doença ocular progressiva que afeta ambos os olhos de forma assimétrica, resultando no adelgaçamento e aumento anormal da curvatura da córnea. Esta alteração estrutural leva a um astigmatismo irregular e a uma diminuição da acuidade visual, que pode comprometer significativamente a qualidade da visão. O diagnóstico precoce e um tratamento adequado são fundamentais para travar a progressão da doença e preservar a melhor visão possível. Neste artigo, exploramos o que é o queratocone, os seus sintomas, os métodos de diagnóstico e as opções de tratamento disponíveis.

O que é o queratocone?
O queratocone é uma patologia ocular bilateral e assimétrica que se caracteriza pelo adelgaçamento progressivo e aumento da curvatura em forma de cone da córnea. Esta deformação afeta, geralmente, a região central ou paracentral da córnea, sendo a zona inferior temporal a mais frequentemente envolvida.
A nível celular, as primeiras alterações ocorrem nas camadas mais superficiais da córnea, nomeadamente no epitélio corneal, na membrana de Bowman e no estroma corneal. O adelgaçamento da córnea resulta da apoptose das células epiteliais, acompanhada pela degradação ou perda da membrana de Bowman. O estroma corneal, essencial para a transparência da córnea, sofre alterações estruturais, com uma redução no número de lamelas, especialmente nas áreas mais afetadas pelo cone. Estas modificações comprometem a regularidade e estabilidade da córnea, contribuindo para a deterioração da qualidade visual.
A nível molecular, o queratocone está intimamente relacionado com o stress oxidativo e com proteínas específicas que afetam a integridade estrutural da córnea. Estas alterações levam a uma diminuição do teor de colagénio, apoptose dos queratócitos e necrose do estroma, comprometendo a resistência e transparência da córnea.
O queratocone tem uma forte componente genética, estando frequentemente associado a síndromes hereditários, como a síndrome de Down, síndrome de Noonan e síndrome de Ehlers-Danlos. Além disso, indivíduos com familiares de primeiro grau diagnosticados com queratocone apresentam um risco significativamente maior - estima-se entre 15 a 67 vezes - de desenvolver a doença.
Além da predisposição genética, diversos fatores ambientais e familiares contribuem para um maior risco de desenvolvimento da patologia. Indivíduos com tendência para reações alérgicas e condições atópicas, como asma, eczema e rinite alérgica, apresentam maior prevalência de queratocone. Estudos indicam que cerca de 52% dos pacientes com a doença apresentam níveis elevados de Imunoglobulina E (IgE), um marcador associado a respostas alérgicas.
Os indicadores clínicos do queratocone
O queratocone é uma patologia que, na maioria dos casos, manifesta-se entre a segunda e terceira década de vida, progredindo até aproximadamente os 40 anos de idade. No entanto, pode desenvolver-se tanto mais cedo como mais tarde. A condição afeta ambos os olhos, mas com graus de severidade distintos. Os sintomas mais comuns incluem visão desfocada ou distorcida e a necessidade frequente de atualizar a prescrição dos óculos devido a alterações no erro refrativo.
Nos estágios iniciais, a doença pode apresentar-se na sua forma subclínica, caracterizada por alterações subtis na córnea que ainda não comprometem significativamente a acuidade visual. Nestes casos, exames de imagem, como a topografia e tomografia corneal, podem detetar assimetrias na curvatura corneal, deslocamento do ápice corneal anterior em relação ao ápice posterior, adelgaçamento da córnea e perda de volume corneal. A deteção precoce continua a ser um desafio para os profissionais da visão, mas é essencial para uma melhor gestão da progressão da doença e para um prognóstico mais favorável a longo prazo. Nesta fase inicial, o queratocone pode apresentar-se apenas com erros refrativos comuns, como miopia e astigmatismo, sendo muitas vezes identificado apenas através de exames imagiológicos. A análise da topografia corneal, especialmente do mapa de curvatura axial, é fundamental para diferenciar padrões normais de padrões sugestivos de queratocone.
Com a progressão da doença, os sintomas tornam-se mais evidentes, incluindo um aumento da distorção visual, redução da acuidade visual mesmo com correção e dificuldade crescente em obter uma visão nítida com lentes oftálmicas convencionais. Do ponto de vista clínico, observa-se um aumento da curvatura corneal, uma diferença acentuada entre as curvaturas superior e inferior da córnea e o surgimento de aberrações ópticas. O adelgaçamento da córnea ocorre geralmente na região central ou paracentral, sendo mais comum no quadrante inferior temporal. Nos casos mais avançados, podem surgir opacidades corneais e maior visibilidade das estruturas nervosas corneais.
A avaliação do adelgaçamento corneal pode ser realizada através da paquimetria, um exame que mede a espessura da córnea. Já a tomografia corneal permite uma análise tridimensional da córnea, possibilitando a avaliação detalhada da sua forma, curvatura e distribuição da espessura, auxiliando no diagnóstico e no acompanhamento da progressão do queratocone.
Tratamento e gestão do queratocone
O tratamento do queratocone varia conforme a gravidade e a progressão da patologia. Em casos leves, a correção pode ser feita com óculos, embora a qualidade visual nem sempre seja ideal. Nos casos moderados, a adaptação de lentes de contacto rígidas torna-se necessária para melhorar a acuidade visual. Já nos casos mais avançados, quando não é possível obter uma boa correção visual com lentes de contacto esclerais, pode ser necessário recorrer a intervenção cirúrgica.
Prevenção da Progressão do Queratocone
Para travar a progressão da doença, o cross-linking corneal é uma das opções recomendadas, especialmente nos estágios iniciais. Este procedimento fortalece a estrutura da córnea, aumentando a sua rigidez e resistência à deformação. Além disso, é fundamental evitar hábitos como coçar os olhos, uma vez que esta ação está fortemente associada ao desenvolvimento e agravamento do queratocone.
Correção Óptica do Queratocone
Nos estágios iniciais, os óculos podem ser utilizados para corrigir o erro refrativo, mas à medida que a irregularidade da córnea aumenta, a qualidade visual com esta solução torna-se insatisfatória. Neste contexto, o uso de lentes de contacto especializadas para queratocone torna-se essencial.
As opções de lentes incluem:
Lentes rígidas permeáveis ao gás corneais (RPG) – Adaptadas diretamente sobre a córnea, são eficazes na correção das irregularidades corneais.
Lentes semiesclerais e esclerais – Proporcionam maior estabilidade, conforto e uma zona óptica ampla, cobrindo parcialmente a esclera.
Sistema piggyback – Consiste na combinação de uma lente rígida sobreposta a uma lente de contacto mole, melhorando o conforto e a estabilidade da lente rígida.
Lentes híbridas – Combinam um centro rígido com uma periferia mole, oferecendo boa qualidade visual e maior conforto.
Lentes moles personalizadas para queratocone – Indicadas para casos específicos, como cones descentrados ou intolerância às lentes rígidas.
Lentes de Contacto Rígidas e Personalizadas
As lentes rígidas permeáveis ao gás corneais (RPG) são a primeira escolha na maioria dos casos, pois proporcionam melhor qualidade visual ao compensar a irregularidade da córnea. A adaptação destas lentes é personalizada de acordo com a morfologia da córnea de cada paciente.
O sistema piggyback, que combina uma lente rígida sobre uma lente hidrófila, melhora o conforto e a centragem da lente rígida. Esta solução pode ser útil para pacientes que apresentam desconforto apenas com as lentes rígidas ou queratocones irregulares.
As lentes semiesclerais e esclerais assentam sobre a esclera e criam um reservatório de lágrima entre a lente e a córnea. Esta técnica reduz o impacto mecânico das pálpebras sobre a lente, proporcionando maior conforto e estabilidade. No entanto, em alguns casos, pode requer cuidados específicos, como a remoção periódica para evitar a acumulação de depósitos na lágrima. Além disso, a troca lacrimal reduzida pode aumentar o risco de hipóxia corneal.
As lentes híbridas combinam um centro rígido com uma periferia hidrófila, proporcionando a nitidez das lentes rígidas e o conforto das lentes moles. No entanto, têm um custo mais elevado em comparação com outras opções.
Lentes de Contacto Moles para Queratocone
O desenvolvimento de lentes de contacto moles personalizadas tem permitido oferecer uma alternativa para pacientes com intolerância às lentes rígidas ou para casos específicos, como cones bastante descentrados. Apesar de oferecerem um conforto superior, a qualidade visual destas lentes pode ser inferior devido à sua espessura central e aos sistemas de estabilização, como prismas de balastro, que podem interferir nos campos visuais.
Considerações Finais
A escolha do tipo de correção depende das características individuais de cada paciente e da progressão do queratocone. A adaptação de lentes de contacto especializadas é essencial para proporcionar a melhor qualidade visual possível. Nos casos em que as lentes não são suficientes para garantir uma visão funcional, podem ser avaliadas opções cirúrgicas, como transplante de córnea ou implantes intracorneanos. O acompanhamento regular com um profissional especializado é fundamental para garantir o melhor prognóstico e a preservação da saúde ocular.
Procedimentos Cirúrgicos para o Tratamento do Queratocone
Em casos avançados de queratocone, quando os métodos convencionais de correção visual, como óculos e lentes de contacto, deixam de ser eficazes, podem ser consideradas intervenções cirúrgicas. Entre os procedimentos disponíveis incluem-se o cross-linking corneal, o implante de anéis intracorneanos, a cirurgia refrativa e a queratoplastia (transplante de córnea). A escolha do tratamento depende do estágio da doença, da progressão do queratocone e das características individuais de cada paciente.
Cross-Linking Corneal
O cross-linking corneal tem como principal objetivo aumentar a resistência biomecânica da córnea para travar a progressão do queratocone. Este procedimento é recomendado em casos ligeiros a moderados, desde que a espessura corneana seja superior a 400 microns.
O tratamento consiste na remoção do epitélio corneal central (aproximadamente 6 a 7 mm), seguida da aplicação de riboflavina (vitamina B2) a 0,1% e exposição à radiação ultravioleta A (370 nm). Este processo estimula a formação de novas ligações entre as fibras de colagénio do estroma corneal, conferindo maior estabilidade à córnea. No entanto, não corrige a irregularidade corneal já existente, pelo que, após o procedimento, a maioria dos pacientes continua a necessitar de lentes de contacto rígidas para uma melhor acuidade visual.
A eficácia do cross-linking varia consoante o paciente, mas estudos demonstram que pode reduzir significativamente a progressão do queratocone e, em alguns casos, melhorar a qualidade visual.
Cirurgia Refrativa no Queratocone
Em pacientes com queratocone estabilizado, sem progressão da doença, podem ser consideradas algumas opções de cirurgia refrativa para melhorar a acuidade visual. Entre estas destacam-se:
Queratotomia Fotorrefrativa (PRK) – Utiliza um laser para modificar a curvatura da córnea, reduzindo as aberrações ópticas e melhorando a qualidade visual. Habitualmente, este procedimento é realizado em associação com o cross-linking para garantir a estabilidade da córnea.
Implante de Lentes Intraoculares Fáquicas (LIOs) – Indicadas para pacientes com queratocone ligeiro a moderado e baixos níveis de astigmatismo irregular, que consigam obter boa acuidade visual com óculos. Estas lentes são implantadas sem remover o cristalino e podem ser combinadas com outros procedimentos, como os anéis intracorneanos.
Anéis Intracorneanos – Indicados para casos ligeiros a moderados, consistem na inserção de segmentos semicirculares transparentes no estroma corneal para regularizar a forma da córnea. Estes anéis melhoram a qualidade visual não corrigida e facilitam a adaptação de lentes de contacto. Contudo, não impedem a progressão do queratocone e apenas podem ser utilizados em pacientes com córnea estabilizada e uma espessura mínima de 450 microns no local da implantação.
Transplante de Córnea (Queratoplastia)
Nos casos avançados de queratocone, onde a córnea se torna demasiado fina e irregular para permitir a adaptação de lentes de contacto, pode ser necessário recorrer a um transplante de córnea (queratoplastia). Estima-se que cerca de 10 a 20% dos pacientes com queratocone desenvolvem a doença até um estágio que exige esta intervenção.
As técnicas mais utilizadas são:
Queratoplastia Penetrante – Consiste na substituição total da córnea afetada por uma córnea doadora saudável. Este procedimento é indicado em casos severos, quando a deformação corneal impede qualquer outra forma de reabilitação visual.
Queratoplastia Lamelar Anterior Profunda (DALK) – Substitui apenas o estroma corneal doente, preservando a membrana de Descemet e o endotélio do paciente. Esta técnica apresenta menor risco de rejeição do enxerto e permite uma recuperação mais rápida em comparação com a queratoplastia penetrante.

Considerações Finais
A escolha do procedimento cirúrgico para o tratamento do queratocone depende da gravidade da doença e das características individuais de cada paciente. O cross-linking é a principal opção para travar a progressão do queratocone nos estágios iniciais. Para melhorar a acuidade visual em córneas estabilizadas, podem ser considerados anéis intracorneanos, PRK ou implantes de lentes intraoculares. Nos casos mais avançados, quando estas opções já não são viáveis, o transplante de córnea pode ser a única solução para recuperar a função visual. O acompanhamento regular com um profissional especializado é essencial para garantir o melhor resultado possível e preservar a saúde ocular.
Conclusão
O queratocone é uma doença progressiva da córnea que pode ser gerida eficazmente através de um diagnóstico precoce e um plano de tratamento adequado. A identificação atempada de sintomas como visão distorcida, aumento frequente da graduação dos óculos ou fotossensibilidade é fundamental para uma intervenção adequada. A avaliação por um profissional de saúde visual, incluindo exames especializados, permite monitorar a evolução da patologia e definir a abordagem terapêutica mais indicada para cada caso.
Perguntas Frequentes
O queratocone pode levar à cegueira?
O queratocone não causa cegueira total, mas pode provocar uma perda significativa da acuidade visual se não for tratado adequadamente.
O queratocone é uma doença hereditária?
Existe predisposição genética para o queratocone, por isso pessoas com pais que sofram desta patologia têm um maior risco de a desenvolver. No entanto, nem todas as pessoas com histórico familiar desenvolvem esta condição.
O queratocone pode ser corrigido apenas com óculos?
Nos estágios iniciais do queratocone os óculos podem ajudar a melhorar a qualidade visual, mas à medida que a patologia avança é necessário recorrer a lentes de contacto, pois estas oferecem uma melhor acuidade visual.
O cross-linking cura o queratocone?
O cross-linking não cura o queratocone. Vários estudos indicam que o cross-linking fortalece a biomecânica da córnea com o objetivo de estabilizar e controlar a progressão da patologia.
O transplante da córnea é sempre necessário em casos de queratocone?
Não. O transplante corneal apenas é indicado em casos avançados da patologia quando os outros meios de tratamento não são eficazes em garantir uma boa acuidade visual.
As lentes de contacto para queratocone são confortáveis?
As lentes de contacto rígidas ou híbridas para queratocone requerem um período de adaptação, mas proporcionam uma qualidade visual que os óculos não permitem providenciar.
Fontes
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